Perdi a oportunidade
de escrever, no ano passado [2006],
sobre a Revolta da Chibata, em seu 96.º aniversário. Também não me interessava
escrever para não publicar.
Em
novembro, aquele movimento – tão pouco relevado pela nossa historiografia –
estará completando 97 anos. Ainda não é número redondo, como pede um bom
pretexto para registro de efeméride. Mas isso é besteira. Se até lá eu não
fizer nada a respeito, fica aqui a sugestão para alguém de maior talento – e
sem precisar do pretexto de efeméride, porque qualquer tempo é tempo de amar.
O
que o leitor deve estar-se perguntando é a propósito de quê toco neste assunto.
Coisa boba: noite passada ouvia no rádio o samba “O mestre-sala dos mares”, de
João Bosco e Aldir Blanc, lançado em 1974 pela vibrante voz de Elis Regina. Só
que a versão não era com Elis Regina, e sim com um ser não identificado (já
que, como denunciei neste espaço, a partir de determinada hora emissoras de
rádio não informam sequer o nome dos intérpretes).
Aquela
interpretação anêmica me parecia recente; pelo menos não me lembro de tê-la
ouvido antes. Aí me perguntei: se a gravação é recente, por que a letra de
Aldir Blanc continua censurada pela ditadura militar?
Cito
aqui parte da primeira estrofe, sob censura. Ela fala do líder da revolta, João
Cândido, o Almirante Negro:
“Há
muito tempo / Nas águas da Guanabara / O dragão do mar reapareceu / Na figura de
um bravo feiticeiro / A quem a
história não esqueceu / Conhecido como o navegante
negro (...)”.
Como
revelaria depois o próprio Aldir, em lugar das palavras “feiticeiro” e “navegante”,
ele havia escrito, respectivamente, “marinheiro” e “almirante”.
O
homem era um perigo. Então, os sábios da censura fizeram com que outros versos
saíssem mais ajeitados e igualmente não atentassem contra a segurança nacional:
“Rubras
cascatas / Jorravam das costas dos santos
/ Entre cantos e chibatas / Inundando o coração / Do pessoal do porão / Que a
exemplo do feiticeiro gritava, então:
/ Salve o navegante negro / Que tem
por monumento / As pedras pisadas do cais”.
Puxa,
os desgraçados dos censores não conseguiram enfear os versos, apesar de negros
serem transformados em santos que sangram.
O
levante aconteceu em 1910, no governo Hermes da Fonseca. Foi então que um
jornal, o Correio da Manhã, fez
referência ao marinheiro como “o ‘almirante’ João Cândido”. Mais de sessenta
anos depois, o termo, já incorporado à História, seria proibido – coisa que não
foi feita nem pelos militares da época da revolta, responsáveis pela morte de
dezenas de marinheiros, quase todos negros.
Ora,
falamos de samba. Vale a pena repetir os últimos versos de “O mestre-sala dos
mares”, grifando as palavras censuradas da versão original:
“Rubras
cascatas / Jorravam das costas dos negros
/ Entre cantos e chibatas / Inundando o coração / Do pessoal do porão / Que a
exemplo do marinheiro gritava, então:
/ Salve o almirante negro / Que tem
por monumento / As pedras pisadas do cais”. O derradeiro verso saiu da garganta
de Elis feito ironia gemida: “Mas faz muito tempo...”
Quase
cem anos. Mas, sem dúvida, ainda estamos na pré-história.
Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás,
n.º 32, 1.º/2/2007)
Muito oportuno, meu caro amigo. Você tem o poder da palavra, sem subterfúgios, nem sofismas. seu poder de discernimento enriquece nossa história. (Gilson Cavalcante).
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