quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Almirante e mestre-sala





Perdi a oportunidade de escrever, no ano passado [2006], sobre a Revolta da Chibata, em seu 96.º aniversário. Também não me interessava escrever para não publicar.
Em novembro, aquele movimento – tão pouco relevado pela nossa historiografia – estará completando 97 anos. Ainda não é número redondo, como pede um bom pretexto para registro de efeméride. Mas isso é besteira. Se até lá eu não fizer nada a respeito, fica aqui a sugestão para alguém de maior talento – e sem precisar do pretexto de efeméride, porque qualquer tempo é tempo de amar.
O que o leitor deve estar-se perguntando é a propósito de quê toco neste assunto. Coisa boba: noite passada ouvia no rádio o samba “O mestre-sala dos mares”, de João Bosco e Aldir Blanc, lançado em 1974 pela vibrante voz de Elis Regina. Só que a versão não era com Elis Regina, e sim com um ser não identificado (já que, como denunciei neste espaço, a partir de determinada hora emissoras de rádio não informam sequer o nome dos intérpretes).
Aquela interpretação anêmica me parecia recente; pelo menos não me lembro de tê-la ouvido antes. Aí me perguntei: se a gravação é recente, por que a letra de Aldir Blanc continua censurada pela ditadura militar?
Cito aqui parte da primeira estrofe, sob censura. Ela fala do líder da revolta, João Cândido, o Almirante Negro:
“Há muito tempo / Nas águas da Guanabara / O dragão do mar reapareceu / Na figura de um bravo feiticeiro / A quem a história não esqueceu / Conhecido como o navegante negro (...)”.
Como revelaria depois o próprio Aldir, em lugar das palavras “feiticeiro” e “navegante”, ele havia escrito, respectivamente, “marinheiro” e “almirante”.
O homem era um perigo. Então, os sábios da censura fizeram com que outros versos saíssem mais ajeitados e igualmente não atentassem contra a segurança nacional:
“Rubras cascatas / Jorravam das costas dos santos / Entre cantos e chibatas / Inundando o coração / Do pessoal do porão / Que a exemplo do feiticeiro gritava, então: / Salve o navegante negro / Que tem por monumento / As pedras pisadas do cais”.
Puxa, os desgraçados dos censores não conseguiram enfear os versos, apesar de negros serem transformados em santos que sangram.
O levante aconteceu em 1910, no governo Hermes da Fonseca. Foi então que um jornal, o Correio da Manhã, fez referência ao marinheiro como “o ‘almirante’ João Cândido”. Mais de sessenta anos depois, o termo, já incorporado à História, seria proibido – coisa que não foi feita nem pelos militares da época da revolta, responsáveis pela morte de dezenas de marinheiros, quase todos negros.
Ora, falamos de samba. Vale a pena repetir os últimos versos de “O mestre-sala dos mares”, grifando as palavras censuradas da versão original:
“Rubras cascatas / Jorravam das costas dos negros / Entre cantos e chibatas / Inundando o coração / Do pessoal do porão / Que a exemplo do marinheiro gritava, então: / Salve o almirante negro / Que tem por monumento / As pedras pisadas do cais”. O derradeiro verso saiu da garganta de Elis feito ironia gemida: “Mas faz muito tempo...”
Quase cem anos. Mas, sem dúvida, ainda estamos na pré-história.

Hamilton Carvalho
(Notícias de Goiás, n.º 32, 1.º/2/2007)

Um comentário:

  1. Muito oportuno, meu caro amigo. Você tem o poder da palavra, sem subterfúgios, nem sofismas. seu poder de discernimento enriquece nossa história. (Gilson Cavalcante).

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